quinta-feira, 30 de julho de 2009

Long Play



The Tramp



Last Supper




Fumo

Unhas por cortar.
Barba por fazer.
Como que um vulto omnipresente, o senhor Rufino afoga-se na luxúria da sua cama de madeira maciça.
Desperta sem saber porquê.
Ressuscitou do sono pesado que cerrava as suas pálpebras por meras horas.
Intrigado, ergue-se calmamente e dirige-se ao mini-bar da sua sala, decidido em preparar um Martin fresco e adocicado.
Acende o famoso cachimbo, relíquia de família certamente e deixa-se ficar ali.
Olha em redor, fixa os olhos na enormidade de prédios que preenchem a vizinhança, que conduzem as largas avenidas ao protagonismo irreverente do centro da cidade.
Estranho, pensou .
O movimento nocturno era superior ao habitual,e não se tratava da barulheira de sexta e sábado à noite.
Era mais uma terça-feira de um Inverno particularmente gélido e extremamente desagradável ao toque do vento nas faces de estranhos avermelhados, atordoados com a madrugada cortante, determinados em encontrar uma esquina que abrigasse o vazio que insistia em ficar.
Viúvo de limpezas, de preocupações.
Rufino apreciava com apreço a urbe, o espectáculo de luzes.
Ouvia murmúrios daqui e dali, escutava conversas a meio, advertia meticulosamente o desenvolver de gestos apaixonados.
Adiou por várias horas a decisão de se levantar, de voltar para as fronteiras do conforto muscular.
Já cansado visitou por instantes o frigorífico, em seguida a casa-de-banho.
Terminou a viagem no consolo de lençóis convidativos, e sem mais forças para resistir, caiu na luz débil e subtil que cobria timidamente o seu quarto.

sábado, 11 de julho de 2009

Rugas

Muitas vezes não me diz nada, e como já ando mal da vista e a idade não perdoa é-me difícil sentir a verdadeira essência.
No decorrer dos meus pesados 82 anos, questionei-me variadas vezes acerca do dito cujo.
Eram às centenas, na casa dos vizinhos, no meu corredor, em museus, em galerias.
Lá apareciam eles, colocados com cuidado num espacinho que sobrasse na parede branca e límpida, de aspecto solitário.
Alguns eram de notável beleza e esforço na sua execução.
Outros pareciam coisas sem jeito nenhum, feitas por uma criança de dois anos ou por um invisual..
Após tamanha reflexão, seria Arte ?
Um quadro preto com um risco branco no meio é considerado arte ?
Sempre tive em mente que o meu vizinho do resto-de-chão com jeito para a coisa faria um trabalho muito melhor.
Intrigada com o assunto analisei a questão em termos filosóficos, mas pouco ajudou, dado que me remetiam para um conjunto de teorias que tinham por base a relatividade da arte.
Eu cá continuo a achar que esta coisa das linhas direitas e da Arte comtemporânea é uma treta.
E como burro velho não aprende línguas, a questão manteve-se no meu pensamento por mais alguns instantes.
Até que me lembrei: "Ainda não vi o correio hoje!"
Apressada, vesti o robe azul-marinho e calcei as pantufas confortáveis a condizer e chamei o elevador.
Já com a chave na mão, abri a pequena caixinha de surpresas.
Fiquei radiante porque trouxeram a famosa DICA da Semana.
Um jornal grátis e interactivo que nos remete para os hiper-mercados do LIDL.
Subi lentamente as escadas e só descansei quando me sentei na poltrona esverdeada que decorava a minha sala.
Abri a parte dos passatempos, e comecei a fazer sudoku.
Já ao som de Amália Rodrigues, deixei-me Dormir.



@Rita - 12/7/2009

sexta-feira, 10 de julho de 2009

"A idade está no uso que dás ao tempo"

O MITO

Não gosto nada quando acontece.

Só o acto em si , mostra-se simplesmente sem utilidade nenhuma.

A expectativa de olhar em redor, mirar as possíveis e eventuais velhotas com roupões sarrabecos que possam estar à escuta, à espera de que o momento fatal daquela manhã fresquinha ocorra, mesmo em frente aos seus olhos atentos e vacilantes que procuram informação constante, na ânsia de soltar uma gargalhada mesmo à nossa frente, relatando tudo posteriormente no café do António.

São dias apressados, em contra-relógio.

Não restam minutos para o pentear, e o estrondoso conjunto de vasos capilares vem assim ao natural, a percorrer as ruas livremente, resistindo heroicamente ao gel extra forte que me custou quarto euros no continente.
É evidente que se revelou dinheiro mal gasto. Os anúncios pareciam tão credíveis. Ou se calhar fui eu que vi mal.
Eram seres humanos a fazerem altos passos de breakdance, energéticos e ágeis com cabelos fortemente oleados, que resistiam à pressão de um pino de cabeça, voltando ao seu estado estado sensação imediatamente de seguida.
Após tamanha reflexão, desisti.

Que se lixe a porcaria do cabelo.

Sempre tenho mais tempo para preparar o meu pão de cereais com rúcula e fiambre de peru, actualmente com ascensão no mercado de sandes. Então não é que no início, o pão de cereais era o patinho feio no seio das padarias.
O pão de forma e o pão de centeio ficavam sempre visíveis nos vidraçais, impunes, com a mania da ribalta.
Eram sempre eles que comiam a carne assada boazona lá do sítio.

E o pão de cereais, triste e magoado pelas incertezas da vida, contentava-se com a margarina fora de prazo que ninguém pegava. Até que numa bela tarde de Domingo, com um solinho agradável e uma temperatura relativamente
benzinha, recomendada pelo serviço nacional de saúde, com o carimbo dessa mítica fundação saudável algures perto das núveis, daquelas temperaturas que não chateiam o decorrer normal do dia-a-dia eu descobri-o.
Lá escondido na padaria do bairro, o pão de cereais lacrimejante a mirar-me com olhos de carneiro mal morto.
"heim, isto é que está um solzinho prazenteiro!"

"É verdade Doutor João"- respondeu a D.Helena toda jagunça com a combinação à mostra, a observar-me com aquele olhar como quem diz "Compra lá o que quiseres e vai cagar à mata".
"Uhh, novidades em termos económicos referentes à queda do pão de mistura?"
"Ai menino, não percebo nada do que está prai a dizer, mas não goze aqui com a velha, senão vou ser obrigada a introduzir-lhe um cacete de tamanho considerável pelo ânus acima".
"Pronto, pronto.. desculpe, tudo menos o cacete no rabo que depois a minha mulher pensa que sou um drag queen larilas".

Até aqui, tudo bem.

Repentinamente, aparece o maior gordalhufo do bairro por detrás das cortilhas ao estilo talhante, que separavam a produção de pães da loja propriamente dita.
Toda a gente sabe que o senhor "Hernando-buraconegro" era um vulcão no que toca a gases, provenientes de uma matéria obscura tóxica, superior a qualquer bomba nuclear inventada até aos dias de hoje.

Avistei-o com cautela e como que possuído por um impulso de sobrevivência, pedi os pãezinhos supostamente "Rafeirosos" com pouca saída no estaminé da D.Helena e corri com velocidade até à segurança do meu sofá.

Petrificado com o sucedido, e relembrando memórias regorgitantes que surgiam na minha mente, abri o saco do pão, e dei uma trinca.

E pronto, basicamente foi a partir dessa altura que surgiu a loucura do pão de cereais na minha vida.

Em relação aos outros acontecimentos marcantes que andam prai feitos loucos, falo noutro dia.

Penso que este depoimento chegou por hoje.



@Rita - 11/7/2009